terça-feira, 20 de março de 2007

As Tempestades e Ímpetos de Hélade

"Que obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso! Nas ações, como se parece com um anjo! Na inteligência, como se parece com um deus! A maravilha do mundo!"
(Shakespeare. 'Hamlet')

"Eis um homem de verdade!"
(Napoleão, diante de Goethe)


Há 250 anos nascia, em Frankfurt, Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), a maior personalidade e poeta da literatura alemã e um dos maiores gênios artísticos de toda a história da arte. Sua obra, patrimônio universal, contemplou de modo sublime todo um universo de modelos e estilos, desde a poesia até o drama, passando pela novela, romance, ensaios, diários, cartas, etc. Falar de Goethe é discorrer a respeito da própria História do Espírito Humano, tal a grandeza e amplitude de sua obra - incontestávelmente um dos maiores monumentos literário-filosóficos da humanidade.

Conforme afirmou o biógrafo do poeta, Pietro Citali: "Cada uma das metáforas fundamentais de Goethe, cada uma de suas grandes intuições intelectuais, cada personagem importante de seus livros assemelha-se a um pequeno sistema solar."

A vida e a obra de Goethe refletem e iluminam de tal modo a mentalidade e as transformações pelas quais passava a Alemanha e a Europa que se costuma falar de uma Goethezeit ('Era de Goethe'). De fato, jamais em toda a história da haumanidade um homem mereceu tanto a alcunha de gênio universal. Nada lhe escapou, do contrário, seu espírito enciclopédico tudo vium tudo pensou, tudo transubstanciou em beleza artística. Afirmou Otto Maria Carpeaux: "A Goethe tudo serviu: mulheres e amigos, nação e Estado, trabalho, ciência, literatura, arte, a própria época histórica; tudo isso teve para ele o valor instrumental de ser 'ocasião' para ele transfigurá-la em poesia."

Goethe foi titânico no seu amor à Natureza, à Liberdade, à Grécia, à Shakespeare, à Arte, às Ciências, às Mulheres (que teve em demasia)... enfim, um navegante da Beleza. Toda sua vida foi marcada pela reveladora presença da figura feminina e, ele expressou esse turbilhão de sentimentos e experiências nas mais belas poesias líricas da língua alemã.


O Luto da Lírica

"Quantas vezes tenho de acalmar meu sangue rebelado - pois nunca viste nada tão desigual, tão inquieto como este coração."
(Goethe. 'Os Sofrimentos de Werther')

Goethe nasceu numa nação politicamente desmembrada em uma gama de reinos governados tiranicamente por príncipes, não existia uma nação e nem uma literatura alemã propriamente ditas. O que se viA era um painel desolador: uma Alemanha arrasada economicamente pela Guerra dos 30 Anos com um comércio e classe média esmagados e atrelados ao poder medieval de seus inexpressivos príncipes. Uma nação que não teve a sua Renascença, isolada do restante da Europa e, que vivia falaciosamente sob a égide da cultura iluminista-palaciana francesa. Como afirmou Arnold Hauser em História Social da Literatura e da Arte: "O espírito burguês dos séculos XV e XVI desapareceu da arte e da cultura alemãs - de quaisquer restos de arte e de cultura sobreviventes à Paz de Vestefália. Porque OS alemães não só seguiram o estilo aristocrático francês, mas adotaram-no sem restrições, importando artistas e obras de arte da França ou imitando servilmente os modelos franceses." O principado alemão tinha no rei da França e na corte de Versailles um modelo de vida a ser seguido, custasse o que custasse ao restante da nação.

Em meio a esse vergonhoso quadro de submissão da camponesa Alemanha perante a aristocrática França, é que Goethe, indignado, torna-se discípulo do pensador pré-romântico Herder e, juntamente com outros artistas de concepções romantizantes, "descobrem" o teatro de Shakespeare, a poesia de Ossian, a filosofia de Rousseau, a Idade Média Alemã e as canções populares, para, somando tudo isso às revolucionárias e idealistas concepções acerca da necessidade de um "nacionalismo literário" e do conceito profundamente inovador de gênio artístico, formentar as principais bases ideológicas para a eclosão do "Sturn und Drang" ('Tempestade e Ímpeto') na Alemanha.

O Sturn und Drang foi um movimento pré-romantico de renovação da cultura e letras alemãs que se insurgiu contra a influência nefasta que a cultura francesa exercia sobre a alemã. Tal movimento era caracterizado por profundas inclinações místicas, medievalismo, sentimentalismo e contradições filósóficas - um misto de individualismo revolucionário e idealismo poético! Uma nova sensibilidade poética que nega e combate a estética classicista francesa.

É nesse contexto histórico de insolúveis inquietações existenciais que o jovem e rebelde Goethe vem se constituir no maior poeta e arauto do Sturn und Drang com a publicação de suas magistrais poesias líricas e do fundamental romance epistolar "Os Sofrimentos do Jovem Werther" (o romance do romantismo!). Esse retrata a trajetória de um amor não correspondido e do consequente suicídio do herói; tudo, envolto num excessiva aurea de sentimentalismo e, crescente desespero, melancolia e tragédia final.

Com isso, o personagem Werther torna-se o símbolo de uma era, o protótipo do herói romântico: homem sonhador, melancólico e inconformado que leva até as últimas consequências as soluções mais trágicas para dar cabo ao inexorável conflito entre a sede de Absoluto do "eu romântico" versus a pobreza prosaica da vida cotidiana.


Fáustica

"Ah! Que delícia irrompe neste olhar, / Por meus sentidos, repentinamente! / Sinto vigor, flamante, singular, / Varrer-me o sangue em êxtases fulgurantes. / Gravou um deus, acaso, esses sinais, / Que em mim abrandam a íntima fervura, / A pobre alma enchem de ventura, / E em ímpetos transcendentais, / Me expõem da natureza a oculta Tessitura? /
Sou eu um deus?"
(Goethe. 'Fausto')


A síntese goetheana suprema se firmou com o adventou de sua velhice onde Goethe finalmente conclui sua obra maestria: "Fausto", o maior poema dramático-filosófico da literatura alemã. Fausto foi obra de uma vida; Goethe levou 60 anos para finaliza-la. A respeito de sua importância, sentenciou Harold Bloom em O Cânone Ocidental: "Como as peças de Shakespeare, a Divina Comédia de Dante e o Don Quixote de Cervantes, o Fausto é mais uma escritura secular, um imenso livro de ambição absoluta." - o momento mais sublime da chamada "religião do eu", segundo o mesmo autor. Fausto/Goethe, com sua infinita exuberância da linguagem, magnificência lírica e inventatividade mitopoética aspira a uma visão total da essência do Espiríto Humano.

"Eu mesmo, o que sou? O que foi que fiz? Eu recolhi e utilizei tudo o que ouvi e observei. Minhas obras foram alimentadas por milhares de indivíduos diversos, ignorantes e sábios, pessoas cultas e tolos. A infância, a maturidade e a velhice vieram me oferecer suas idéias, suas faculdades, suas maneiras de ser. Frequentemente eu colhi o que outros tinham plantado. Minha obra é a de ser um coletivo que leva o nome de Goethe." (Goethe)

Um livro que elevou as aspirações humanas a altos cumes de beleza e profusão de desejos! Fausto/Goethe tudo quer, tudo prova... Quantas sedes!... Quantos sonhos!... Utilizando uma belíssima metáfora de Nietzsche, Fausto é o "rio do ser".

Fausto/Goethe é um dos fundadores do modernidade haja vista que tentando gerenciar e modificar o "seu" velho mundo (medieval), o personagem Fausto vivência as tensões espirituais e as rupturas históricas que irão culminar numa nova ordem sócio-economica. Desse modo, ele vislumbra um novo mundo: o mundo burguês. Como acrescentou Marshall Berman em Tudo O Que É Sólido Desmancha No Ar - A Aventura da Modernidade: "Fausto participa de (e ajuda a criar) uma cultura que abriu uma amplitude e profundidade de desejos e sonhos humanos que se situam muito além das fronteiras clássicas e medievais." Não por acaso, Puchkin se referia a Fausto como a "Ilíada da vida moderna".


Werther visita a Grécia...

"Assim seja Goethe: nossa sede de plenitude da inteligência, de olhar universal e de produção feliz. Ele representa, Senhores Humanos, uma das nossas melhores tentativas de tornarmos-nos semelhantes aos deuses."
(Paul Valéry)

"Ah! Vivem em meu peito duas almas!"
(Goethe. 'Fausto')

A crítica literária, tradicionalmente, divide de modo arbitrário a vida de Goethe em dois períodos distintos e antagônicos: O jovem Goethe pré-romantico e o velho Goethe neoclacissita. Tal didatismo é simplicista e empolbrecedor da grandeza e amplitude do gênio de Goethe uma vez que só se limita a enxergar no último Goethe uma figura de calma olímpica dotada de um "soberbo autocentrismo", - um homem alquebrado pelo destino e enrijecido pelo tempo. Eis uma visão completamente anacrônica e indigna do autor de Fausto. Argutamente afirmou o grande Erich Auerbach em Mimesis: "É completamente tolo desejar que Goethe tivesse sido diferente do que foi; os seus instintos, as suas inclinações, a posição social que alcançou, os limites que impôs à sua atividade, fazem parte dele; de nada disso pode-se prescindir, sem destruir o conjunto."

Não há como negar que o homem Goethe teve desde sempre grandes ambições palacianas, egocentrismo exarcebado e insensibilidade política. Contudo, Goethe não se esgota no "Classicismo de Weimar". Como bem notou Paul Valéry, Goethe é um gênio de metamorfoses, que não se deixar apreender, que não se deixa reduzir a meros esquemas teóricos. Nesse sentido, é imprescindível destacar que Goethe, no final da vida, foi um homem que concebeu e comungou dos mais elevados e caros ideais de sua época: ele ansiava por um ideário de "formação total" da cultura do indivíduo e por uma sociedade mais livre e plena onde houvesse espaço para uma "literatura mundial" que congregasse homens e nações.

Não obstante, o universo-Goethe sempre estará além do nosso trôpego entendimento: nem romantismo, nem classicismo; nem idealismo, nem realismo; nem Apolo, nem Dionísio. Antes, a fusão dos contrarios! Nem o novo, nem o velho. Antes, o homem total! Goethe realiza o caminho inverso de Prometeu: leva o fogo sagrado de volta para o Olimpo, mas, já agora, um outro fogo, um fogo humanizado.

Em suma, fosse qual fosse o período de sua vida e estilo literário, Goethe visava sempre um único fim, o mais universal, multiforme e glorioso de todos: o Homem.


"... assim me torno eu próprio a humanidade."
(Goethe. 'Fausto')

ass: Rodolfo Miranda

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Ps: Artigo publicado na terceira edição do Jornal de Direito da Universidade Católica de Brasília por ocasião da comemoração dos 250 anos do nascimento de Goethe.